quarta-feira, 26 de novembro de 2014

preto


Permanecia imóvel olhando pro teto. O colchão ainda suado e latente parecia com nossos corpos e refletia o estado de espírito daquele momento, se é que momento tem espírito, se é que estado tem momento... Só posso dizer o que o silêncio dizia. Só posso afirmar o que nosso corpo demonstrou. Nada mais me cabe: Significar, deduzir, aceitar ou conduzir. Neste momento ali, no quarto, eu passeava suave pelo seu rosto com a ponta dos meus dedos e, além disso, não queria mais nada, a não ser continuar olhando ele olhar pro teto.
... Fazia sete meses desde que o preto chegou à cidade, vinha de uma viagem longa, uma viagem misteriosa e tão distante destas realidades brancas, que por vezes deixava de ser contada, ficando apenas no imaginário de amigos mais próximos.
Chegou à cidade e com toda sua discrição, fez o maior rebuliço. Alterou, sem saber, os domingos, e sem pensar causou movimentação. Desde que voltou para a cidade das bicicletas, não conseguiu ainda desarrumar as malas, elas eram tão grandes, bonitas e pesadas que ficavam enfeitando por vezes a casa, virando fotografias, se tornando pousadas. Tentou umas três vezes arranjar lugar para tudo aquilo, mas não cabia nem dentro dele nem dentro de todas as bicicletas, nem dentro de todas as cidades das bicicletas.
Sentou... Foco agora na parede, talvez uma sujeira, uma aranha, um rabisco ou uma história... E foi forrando o lençol da cama pela terceira vez, que ele me disse coisas como família, vida, amor e amizade, tirando da mala maior bastante saudade, mas também muitos livros, arcos e flechas, estampas e sorrisos. Mostrou-me alguns cansaços e sem perceber, deixou cair meias verdades. Peguei-as do chão e entreguei a ele de volta, tentando dizer que não eram tão meias assim, que tudo aquilo era inteiro.
Anoitecer sempre mexeu com ele, pois ter sua cor refletida no céu o faz sentir à vontade, escapando sem perceber de alguma realidade, que ousou inventar.
(Trouxe ele então de volta para cama)
Anoitecer sempre mexeu comigo, pois ter minha cor refletida no céu me faz sentir mais nítida, me entregando assim para a vida, antes dela clarear.
Ficar á vontade nos mistérios e bagagens do preto me dá a tranqüilidade de poder manter os meus... as minhas... E voltando agora pra casa, depois de tantas horas e orgasmos, tantos fatos e retratos, misturados com alegria, pensei em mudar de cidade, cortar o cabelo, fazer as unhas. Talvez um vermelho... Pensei em deixar as malas lá pra ele poder arrumar com calma, poder sair da cama, poder respirar. Pensei em tanta coisa que fui dormir.
Em minha cama sonhei com ele no mar, e não estava só. Junto com outro rapaz buscava algo e eu na areia olhava pro dois. Olhava tendo a certeza que iam encontrar... Foi tão intenso que acordei chamando por ele, ligando pra ele, contando pra ele. E assim como as malas dele não couberam nas suas cidades, esta minha curiosidade não coube em mim.
Mas obriguei minha boca a fazer silêncio, enquanto meu corpo gritava comigo, clamando por aquela combinação enlouquecedora, aquela sintonia tesa e sinistra que horas me assustava, horas me derretia num calor pleno. E o recordar do cheiro, dos pêlos, das texturas e dos sabores me faziam arrumar o lençol da cama (repetidas vezes) por conta do meu balançar solitário.
Como assassinar a vontade? Se a simples lembrança da barba mal feita passando em minha nuca me faz arrepiar, e fechar os olhos já é motivo pra sentir de novo o preto em mim...