Era uma amizade antiga, um relacionamento que já nem cabia em imensidões de palavras e gestos. Tratava-se de um colega do colégio que conheci no recreio do primeiro dia de aula através da bendita senhora da cantina, ela era pequena e suja. Não havia troco para mim e sendo assim que estava atrás de mim na fila ficou responsável por me ajudar.
Ele já tinha cara de jogador de futebol na época, era loiro e bastante atrapalhado, mas conseguiu arranjar uma moeda de vinte e cinco centavos e dei o fora dalí depois de um obrigado cru. Mais tarde encontrei com ele na portaria, meu pai ia me buscar, mas se atrasou (como sempre) e acabei perguntando as horas a ele.
“Quinze para uma”...
Como conspiração ou acaso, ou qualquer outra coisa nada a ver, ele e eu passamos a nos encontrar todo recreio e conversávamos sobre todas as coisas do mundo, nossas professoras, os foguetes, os programas de TV, os assuntos das provas e as partes que mais gostávamos nas meninas do ensino médio. Eu tinha nove e ele doze, eu sou de sagitário e ele leão, mas nesta época não sabíamos. Ele foi várias vezes em minha casa e eu nunca fui à dele.
Era uma amizade bonita e eu sabia que mais cedo ou mais tarde ela acabaria.
Chovia de um jeito que nunca vi igual, as árvores do parque balançavam fortes e senti o barulho da água no chão escuro, pareciam dizer alto que o mundo não me queria de pé aquela hora, mas precisava, na verdade tinha que sair daquele lugar exatamente agora e não encontrava capa de chuva nem nada do tipo, estava nervoso e minha gravata apertava. Escolhi o caminho mais longo por idiotice ou pressa, a moto ainda atolou e meu relógio inventou de parar...
Levei as mãos á cabeça, mas não desisti. Na hora poderia ter rezado um pai nosso, ter ligado para alguém, ter chorado, mas forcei a moto para frente e para trás, liguei, desliguei, falei com ela... A chuva doía as costas e consegui sair. Peguei a estrada por uma hora e a moto finalmente parou. Dali para frente era eu sozinho.
Eu não fazia a barba desde a terça feira e ele não gostava disso, sempre andava impecável e reclamava de minhas bermudas e descuidos, preferia vinho seco e eu cerveja gelada, mas sempre tínhamos de tudo em nossas casas... lembro que ele conseguiu um financiamento e comemoramos no prédio novo por dois dias inteiros. Eu, ele e mais quatro garotas de programa que ele pagou sozinho. Eram três quartos e um ficou como escritório, outro como meu. Ele escrevia para um jornal famoso de Aracaju e costumava viajar muito...
Apressei meus passos pois a chuva não ia diminuir e eu já tremia de frio, além disso morro de medo de trovões, raios... Não ia tardar a vir... Cheguei no aeroporto e obviamente fui observado por todos aqueles olhares desocupados, eu pingava e corria. Também chorava, mas não vem ao caso.
Era uma amizade com sentido, nada resumido a troca de afeto ou serviços, éramos amigos e nunca mais o viria.
Corri mais, era agora ou nunca.
Um guarda me barrou pedindo explicações mas não lembro sequer de seu rosto, palavras, motivos. Foi um anjo e deixou-me continuar... Era um homem já, aliás, éramos homens feitos e não haveria muito o que fazer.
Meu sapato fazia um barulho engraçado e eu comecei a pensar que poderia não encontrar mais meu amigo... andei mais devagar e foi analisando outras formas de o encontrar, eu queria pedir somente mais uma tarde. Não é muito, é?
São Paulo, 23:50h...
-Moço... que horas, por favor? Meu relógio parou!
-Não era a prova de água não é mesmo?(risos)
-Por favor, que horas!
-Deixe-me ver... Meia noite meu jovem, meia noite e um para ser mais exato.
-Obrigado.
Não pensei muito, nem chorei mais, engoli uma pitada de ódio, de mim, da moto, da chuva, da Situação. E então insisti, olhei a sala de espera, a pista de decolagem, as lojinhas, o bar aberto e não o encontrei... Até hoje. Completei cinqüenta anos esta semana e achei uma foto que me fez escrever esta história, nela estávamos nós dois com taças posicionadas ao alto da cabeça e estampando sorrisos já tortos e facilmente adquiridos. Nela tínhamos lá pros vinte anos e ele continuava sendo de leão, sentando em cima da mesa e piscando o olho para a minha namorada que bateu a foto.
Recebi um telegrama dele hoje, está voltando... Decidi juntar os pedaços do livro que escrevemos juntos e as fotos que não joguei, comprei quatro garrafas de vinho seco e taças bonitas, paguei uma diarista para arrumar minha casa e fiz a barba. Não demorou mais de dois dias, ele bateu em minha porta, sempre fechada, e estava em cadeira de roda. Não falamos palavra alguma, ele entrou, pegou um pedaço de papel, tirou a caneta da bolsa e escreveu uma música que falava de saudades, eu li e atrás coloquei a letra de “alegria” (de Arnaldo Antunes), antes de terminar ele começou a acompanhar a letra cantando daquele jeito que ele sempre fez, calmo e forte.
A voz dele estava intensa e eu enchi os olhos de lágrimas, mas não chorei. Queria sorrir alto...não consegui falar dos vinhos, do livro nem das fotos, pedi para ver sua mão e beijei com calma, ele levantou meu rosto e me tocou o rosto...falou de minha barba mal feita e sorriu. Não procurei saber da cadeira de rodas, não comentamos o incidente de nossa briga, não demos tempo para dúvidas, tristezas... ocupamos casa segundo com sorrisos e histórias antigas, não contei de meu neto que acabara de nascer, perguntei se lembrava da aposta que fizemos, falei que ganhei mas não precisava pagar, foi aí que lembrei do vinho e bebi junto com ele, andava quebrado e não daria para comprar cervejas também.
Ele me perdoou e eu a ele, pedi um beijo e não conseguimos mais parar, ficamos juntos toda a noite e entendi que ele estava se recuperando de uma cirurgia, daqui a dois dias já poderia andar normalmente. Dormimos juntos e acordamos abraçados, mas custamos a levantar. Seu aniversário era daqui a nove dias, cinqüenta e três anos e estava totalmente em forma, os cabelos escuros ainda, a pele boa, fazia yoga e tinha forças nos braços, calma e sorrisos.
Entendi muita coisa e ele também, comecei a mostrar as fotos e textos, comemos algo e terminamos de beber o ultimo vinho, passamos o dia juntos e foi maravilhoso. Era uma amizade gostosa e costumávamos nos amar quando solteiros. Ele contou do falecimento de Lia e eu do repentino abandonar de Regina, falei de um filme que gravei e ele do livro que ia lançar, contei sobre os signos e ele sobre física quântica. Amei.
Não precisava ser um fim de tarde muito diferente, muito divino, muito extremo, esse era nosso cotidiano, ser felizes juntos, amar a existência e sorrir. Cansei de nada e fui deitar, ele entrou na internet para resolver coisas do livro e me acordou para irmos jantar, foi andando de tão teimoso que é e acabou sentindo dores na perna direita, voltamos...
Ele viajou ainda duas vezes e eu, aposentado, cuidava de cuidar da casa, de gastar dinheiro com comidas boas e vinhos que aprendi a gostar. Tive uma namorada e ele alguns casos ligeiros, era muito safado para conseguir manter um outro relacionamento estável. Veio morar na minha rua, umas duas casas para a direita, já vizinho á padaria de nosso colega da faculdade de comunicação e continuamos amigos e amantes até o dia que ele se foi sem volta...
Deixou lembranças de encher três milhões de buracos negros, deixou aquele radiozinho de pilha para mim e todo o resto para a creche pública que acolheu sua filha que só soube da existência dois dias antes do falecimento, se chamava Adriana e também escrevia. Deixou uma árvore plantada quando jovem em meu quintal e um livro. Sim, ele publicou o livro...
Me fez surpresa em um sábado á noite, fomos a biblioteca central e seria sua estréia, tinha toda imprensa e alguns fãs para pegar autógrafo. Paralisei e senti congelar toda minha coluna ao ver os banners de divulgação, as pessoas esperando e os livros ali, intitulados “Confissões a um amigo” e na capa a mesma foto que guardei para ele... do bar e das taças no alto das nossas cabeças.
chorei...
ResponderExcluirNossa, brigado.
ResponderExcluirlinda história, prova como amigos conseguem ser amantes e amigos, que ainda há o puro e leve jeito de ser, sem ciúmes, sem posse. Adorei. Lembrei, talvez pelo antagonismo de um texto de Caio.
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"Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sócio político artístico filosófico existenciais e bababá em comum só podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta."
realmente vc fez diferente, me mata de orgulho.
tão gostoso vcs por aqui...
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