quarta-feira, 15 de abril de 2020

Carta de uma idosa em 2020

“Precisamos ter calma, avançar com cuidado, proteção e sempre olhando para trás.

Cada palmo de estrada escreve um caldeirão de história, cada pedaço de tormenta procria estratégias, aguça a criatividade, força o aprendizado e o salto em meio a tantos pedregulhos vai sendo treinado.

Caleja pé! Mas não endurece meu coração...

Meu respeito para quem avança frente ao medo, para quem anda na alegria e na tristeza, quem anda!

Quando era pequenininha, acho que não passava dos três anos, meu pai me levou para um sítio tão grande, tão grande, que eu não conseguia ver o final, mesmo na cacunda dele e forçando a vista... Não dava!

Em meio a tanta coisa que aconteceu naquele final de semana, uma coisa eu guardo até hoje em minha memória.

O pintinho morto no galinheiro.

Ele estava amassado, parecia uma folha de papel em meio a tantos galos, galinhas, patos. Ninguém estava mais percebendo ele. E não tem como fazer ideia de quanto tempo ele estava lá. Nem o porquê de ter morrido...

Brincadeiras, comidas gostosas, final de semana incrível, mas que não lembro muito bem. Mas a cena do pintinho... É latente em minha cabeça até hoje. Tantos anos de memórias e ele não sai!

Por quê?

A cabeça que tenho hoje e as memórias que fui juntando no decorrer de minha vida, me permitem avaliar isso e dizer com toda segurança que ali foi meu primeiro sentimento de indignação. Não achei justo ele ter morrido, não achei justo ter sido esquecido, atropelado, tratado como parte do chão. Ali senti pela primeira vez o valor que dou á vida e chorei.

Não lembro se meu pai me viu chorar, nem o que aconteceu depois disso. Mas sei que este sentimento me acompanha até hoje. E em várias situações eu me aperto por dentro, corrói um pouco de minhas cascas, e é como se minhas lágrimas escorressem pelo lado de dentro de meu coração.

Injustiças, Desigualdades, Abandonos... Opressões.

Vamos ter calma e pressa!

Calma para não nos judiarmos ainda mais, sofrendo mais do que podemos suportar, mas pressa para transformar as coisas, nos unirmos! Pensarmos em como podemos avançar, sem deixar de olhar para trás.

Em tempos de guerra, a melhor arma é a estratégia. O que é possível, o que é passível de se realizar? O que queremos e para onde vamos?

Não esqueçamos todos que morreram até aqui querendo transformar o mundo, a vida, as pessoas... Honremos a memória de cada um (a) deles (as) e saia de dentro de si, veja os demais e sinta, provoque, ande! Conquistemos sonhos, vitórias, avanços para nossas vidas e a de quem mais pisar nesta Terra.

Meu respeito a todos que sobrevivem, Dão seu melhor, resistem, lutam, vivem, apesar de tantos pesares. Valorizam sua vida e a dos demais.

Quando completei meus 25 anos, tive festa, tive samba, tive volta ao mundo e reviravolta em meu mundo também. A injustiça virou minha principal inimiga, minha caça, meu ponto fraco, e aquele Ser que era só aparecer, fantasiada ou estampada, que me fazia sair na rua, pintar meu rosto, gritar em alto e bom tom o quanto eu a odiava e o quanto daria minha vida para acabar com a dela!

Desta fase de minha vida, a memória que tenho, por incrível que pareça, é no mesmo sítio do pintinho. Hoje sei que se trata de um assentamento de reforma agrária e foi lá que fiz meu primeiro Curso de Formação Política. E lembro que depois de dias de estudo, vivências e crises com meu próprio eu capitalista, eu fui embora, decidida de que lado lutaria. A memória do curso foi a de assentados jogando futebol, sorrindo, apesar de toda opressão, falta de oportunidades e terra.

Isso me intrigou e hoje, no auge de minha maior idade, sei que ali percebi que a luta para uns é momento, para outros é a única opção, é a própria existência. É a vida!

Sei que não vou durar muito tempo neste plano, e tenho plena convicção que não sei nada sobre outros planos, sobre qualquer coisa que tenha a ver com morte. Mas sei que ela vai chegar. E não quero ser mais uma pisada pela multidão desgovernada e estúpida.

Que a minha hora chegue quando tiver que chegar e que eu tenha sambado o suficiente para ir em paz. Com sorriso no rosto e sensação de vida bem vivida.

Que a injustiça nunca passe aos meus olhos despercebida.

E que todos que continuarem vivos a percebam, a acém, a destruam dia após dia.

Que seja inimiga da nação.

E que a nação desperte! Acorde antes de meu ultimo suspiro e mantenha viva a indignação.
Meu respeito para quem não tem mais o que perder, mesmo assim joga, sorri, ama o irmão, namora a preta, quebra até o chão e acorda cedo em busca das oportunidades que nunca chegam.

Chega de se encostar no conforto.

Completei meus 67 anos e me deparo com uma crise epidemiológica no mundo. Atingindo ricos e pobres, desgovernando as economias, as famílias, nações... E mais uma vez vem minha inimiga rir de minha cara.

Enquanto uns podem esperar a guerra acabar sentados, pedindo delivery, outros são as cozinheiras e motoboys que trabalham para sustentar a quarentena e se sustentar também. Vários são os desempregados que estão na linha de frente com o perigo, nas ruas, no coletivo...

Não pensei que estaria viva para ver isso.

Também não pensei que um vírus traria a atenção de todos os meus filhos para mim, depois de tantos anos abandonada. Que faria meus netos passarem o dia com os pais ao invés das escolas e babás. E ao mesmo tempo estaria matando e causando tanta dor.

Assim, assino o final de minha carta e minha vida, que como uma grande crise epidemiológica, cresce, se alastra, enlouquece, mas uma hora passa. Há de passar.”

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